A porta abre-se para o mar
e é do mar que tu vens
como se os teus braços fossem ondas
e tudo afinal fizesse sentido
nessa ausência ilíquida de formas
um corpo suspenso sobre um horizonte
de renúncias
a âncora subindo de ti
em direcção às nuvens que te esperam
e a bússola talvez nos teus olhos
parada exactamente nesse ponto
em que tudo começa.
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-
Improviso para dizer o cais...
Empresto-te a mão
apenas uma delas
a mão de que não preciso
para escrever que não há rostos perfeitos
destinos escritos a fogo
na intensidade dos olhares
uma voz uma pronúncia
e o sangue que corre
por fora de nós
entrando nessa corrente universal
que aproxima e afasta os corpos
que se aguardam no cais
agora já posso desembarcar nos teus silêncios
tocar a imagem
segredar-te ao ouvido os versos
que tu seguramente completarás
como se sempre tivesses adivinhado
as saudades que esperavam
os lábios entreabertos
o sorriso suspenso
e o mais que não vejo
talvez essa íntima fracção
de uma vontade de regresso
que esvoaça imperceptivelmente dos olhos. -
Improviso para violino, guitarra e medo...
Seria talvez
o último encore
ou o primeiro de todos
mas tu não quiseste arriscá-lo
trocaste o violino pelo medo
e falhaste uma vez mais a partitura. -
Improviso sobre Diabaté...
Vivemos em corpos trocados
agora fechamos os olhos para não vermos
há uma fronteira de invisualidade
que ao mesmo tempo nos separa e aproxima
cegámos o desejo
e agora tacteamo-nos. -
Improviso para aliviar ausências...
Nunca aprendi a dizer
adeus
destituí-me para renúncias
herdei talvez
de minha mãe
esta incapacidade
a morte
que se sentava sempre à mesa
e entretinha as ausências
e eu que comia depressa
para não ouvir
a única janela era interior
e abria para a cozinha
donde vinham todos os cheiros
e todas as vozes
que transgrediam o silêncio
a infância
naquele tempo
em que ninguém se despedia
e todos voltavam
a memória das pessoas
parecia fazer parte delas
não havia palavras
para ensinar o esquecimento. -
Improviso para antecipar o caminho inverso...
Ei-lo
o homem
exactamente à medida da tua paixão
medida de todas as paixões
o primeiro
que riu contigo
que disse talvez que eras única
que te serviu a vida
numa girândola de ilusões
ei-lo
uma vez mais
adolescendo contigo
inventando madrugadas
que jogam a tua ausência
um dia regressarás a ti
pelo caminho inverso. -
Improviso para adormecer pássaros...
Com a simplicidade dos crentes
contaram-me hoje
que alguém
por amor
fingiu deixar de amar quem amava
só para que a gaiola se abrisse
e o pássaro aprisionado
finalmente pudesse voar
em direcção à gaiola que
por direito da paixão
julgava pertencer-lhe
estórias
que a literatura inventa. -
Improviso para explicar que a poesia deve ser outra coisa...
Depois da morte
a vida deve ter mais
do que intervalos
entre as ausências
perguntas-me se aguento
e eu respondo
que tentarei
não saberia sequer dizer-te
o que espero
ou mesmo se espero
este intervalo
já faz parte de mim
sou uma saudade do que fui
talvez a mesma saudade
que te leva a perguntar-me
se aguento
pudesse eu saber
o quê. -
Improviso sobre uma ária de J.S.Bach...
Que os meus olhos sempre despertos
só adormecessem por dentro dos teus
que as nossas mãos
não errassem as cordas da guitarra nem a partitura
que não houvesse mais corpo entre nós
para além do pensamento
e que até as palavras perdessem
a noção do tempo
que tudo
fosse simples delicado e perfeito
como nesta ária de Bach
uma nudez de saudades
um silêncio de lágrimas
a eternidade cantada assim
num sorriso sem data. -
Improviso para segredar ao ouvido...
Há segredos
que eu não dispo para ninguém
senão para ti
que vives dentro deles
como numa espécie de concha da alma
seria inútil negar-te o que sabes
porque sempre o soubeste
mesmo antes de mim. -
Improviso sobre “Caro mio ben”, de Giordani...
Cecilia
no Teatro Olímpico
de Vicenza
cantando apenas para nós
(ficaste com as fotografias)
Caro mio ben
de Giuseppe Giordani
credimi almen
senza di te
languisce il cor
a voz no palco de todas as máscaras
as estátuas espreitando-nos
a antiguidade ali tão perto de nós
e tu subindo e descendo os degraus
à procura do ângulo que falha sempre
il tuo fedel
sospira ognor
cessa crudel
tanto rigor
caro mio ben
Cecilia Bartoli
Agosto de 2003
(digo: Junho de 1998). -
Improviso para violino imaginário...
Se ainda te lembras
foi em Salò
o berço de Gaspare
junto à Piazza Duomo
que comprei
Il Trillo del Diavolo
que agora ouço
tentaste explicar-me a minudência técnica
mas eu não percebi
faltava nas tuas mãos
talvez para a dança da vida breve de Falla
(a aula prática)
um violino
sobrava-nos antes a imaginação de Pier Paolo Pasolini
para todo o horror dos 120 dias de Sodoma
que nos levara àquelas margens tardias do Garda
ainda voltámos a Salò
mas já não a tempo de reescrever a história
a nossa. -
Improviso para distrair o abandono...
Não há segredos
para explicar o regresso
a vertigem do eterno retorno
a nostalgia
transporta-nos sempre aos embalos iniciais
como se apenas no passado
de todos os abandonos
pudéssemos ainda encontrar algum conforto
para o próprio abandono. -
Improviso para dois cravos e todas as cordas...
Ouve
hoje descobri no fundo de mim
uma lágrima
aproveitei para chorar
inadvertidamente
sobre os vinis em terceira ou quarta mão
que um dia me trouxeste das Canárias
a agulha tropeça como eu nas espiras
como se o andante do concerto de Bach tardasse
em dó menor para dois cravos
BWV 1062
ainda há gemidos que eu ouço
no sofá ao fundo da sala
quando tiravas os óculos
para não veres que era eu
nunca me explicaste
por que eram precisos tantos dedos
para tocar um instrumento tão delicado
Gustav Leonhardt. -
Improviso em forma de arquipélago...
Esperaste comigo
tempo de mais
ou o tempo indispensável
eu era apenas um aeroporto periférico
donde talvez deixassem um dia de partir
(acreditaste)
os aviões para os Açores
um daqueles aeroportos em que só pousamos
por razões de escala
as molduras servem para todos os retratos
mas há retratos que não cabem
na única moldura que somos
sempre te disse (lembras-te?)
que há viagens que eternamente adolescemos
eu era apenas um berço tardio
a mais longínqua e inabitável de todas as ilhas. -
Improviso para uma leitora...
Quando todas as vozes
forem uma
regressarei ao cantochão
para morrer. -
Improviso para dizer por que fico...
Há viagens
que o meu corpo já não suporta
viagens à volta de mim
comigo ausente
viagens
por onde nunca serei
o meu corpo
exige-me agora raízes
para voar. -
Improviso sobre a mentira...
A mentira
é uma aprendizagem
aprendi a mentir
no confessionário
diante de uma sombra
que me interrogava
em nome de um deus fardado
eu confessava espontaneamente
todos os pecados
que ele esperava
os pecados do corpo
e até os pecados da alma
tudo a preto-e-branco
e sem genérico ou legendas
cinema mudo para cegos
foi assim
entre perfis de altares vazios
que eu aprendi a mentir
a mim próprio
pecado
de todos o mais capital. -
Improviso para Bach (ou para ti)...
Se entrasses agora
por aquela porta
ouvirias Bach
serias Bach
e eu continuaria a desfolhar em vão
a partitura
atento apenas às tuas mãos
vazias sempre de teclas. -
Improviso para Brecht... *
Brecht
meu cúmplice de tantos dramas
a guerra por aqui
está pela hora do nosso inimigo de sempre
degrada-se o armamento
com o excesso de uso
e os projécteis
já não matam como outrora
inquieta-me todo este desperdício
hoje dispara-se à toa
falta treino de poupança
aos generais
o crédito sopra a indústria da morte
e a morte coitada
faz horas extraordinárias
para abastecer o mercado
mas a guerra não pára
a guerra não pára
e os orçamentos não chegam
para pagar tanta guerra
acabaremos todos nos braços da banca
essa puta inefável.* A imagem que ilustra o “improviso” reproduz uma litografia de Mabel Dwight.