Tenho Portugal atravessado algures em mim
entre o cansaço e a desilusão
pátria género indefinido
macho nas caravelas e fêmea
na vaga espera de todos os solstícios
este excesso de luz que nos cega
esta modorra de negreiros extintos
farsa quase milenar de mascarados
Portugal das cenas do ódio
e de todas as ceias de cardeais
Portugal dos pequeninos
e das mais belas aldeias moribundas
em concurso de sombras
e da padralhada de junqueiro
arena antiga de toureiros e fadistas
e barões ao balcão da mercearia
Portugal também ele exausto
quase tanto como nós.
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Improviso sobre a gaguez do silêncio...
Perguntas-me pelo libreto
como se as árias que arrisco nesta descontínua partitura
já não fossem suficientes
para me cantar
digo-te
não tenho a paciência interior
dos maratonistas da alma
continuo fechado no quarto da infância
entre dicionários cromos e legos
a minha mãe ainda bate à porta
e zanga-se com a chave por dentro
continuo a improvisar os medos da infância
já escrevi e reescrevo aqui
hei-de morrer de inibições
ainda que te desiludas
negar-me-ei sempre o libreto
talvez eu sofra
de uma patologia estranha e quase arcaica
este silêncio sôfrego
e tantas vezes gaguejante. -
Improviso quase musical...
Não tenho batuta nem maestro que me dirija
quando as palavras descendo pelas mãos
me instrumentam
toco-me de ouvido
eu próprio sou a partitura das notas
que fixam os silêncios do meu corpo
que falam
viajo numa galáxia de vozes
entre mim e todos os outros. -
Improviso sobre o regresso...
Com a alma de inverno
fui procurar-me na primavera e voltei
os olhos perfumados de camélias altivas
e as mãos nervosamente suspensas
sobre o tacto prometido
não sou predestinável a viagens impossíveis
tenho o treino e a teimosia dos navegadores solitários
que nunca recuam
perante os mais íntimos horizontes do medo. -
Improviso sobre um abandono de camélias...
Tenho um quintal
plantado na saudade da infância
a que subia por uma estreita escada de granito
sofridamente talhada numa vertente de séculos
era lá que eu me esculpia solitário
entre nomes de coisas que pareciam sorrir
à lógica ainda refractária do meu entendimento
eu não sabia ainda de fronteiras marítimas
nem de caravelas galopantes
mas todos os meus sentidos costumavam dialogar em segredo
com o mistério das formas que me renasciam
interrogando a luz e o cheiro
daquelas corolas que a minha mãe
dizia exiladas do oriente
só muito mais tarde compreendi que as japoneiras
precisavam do silêncio dos meus olhos
para florir neste inverno. -
Improviso sobre a ruptura...
Sou um novelo de palavras
não sei onde me termino
evito os pontos finais
porque o futuro pode sempre começar
numa recusa
entre frases que não cheguei a ligar
um gesto suspenso sobre o pântano
uma rosa que não completou o feitiço
um livro que não saiu do cais
dos segredos impartilháveis
sou um novelo de palavras
e vivo enredado em mim
à espera talvez de um milagre
a derradeira metamorfose
o regresso à fonte de todos os inícios. -
Improviso ao jeito de Alexandre O’Neill...
Projectei o poema
a partir de quatro metáforas de garantida originalidade
todas elas tão pessoais
e intransmissíveis
(supus)
que seria improvável
para não dizer impossível
que alguém as tivesse usado antes
com as quatro metáforas
empreitei o poema
depois comovi-me ao espelho
(se o poema não comove o autor
é um poema falhado)
e
orgulhoso da obra prima
partilhei-a com o patologista de serviço
à urgência das literaturas
o diagnóstico foi fulminante
nenhuma das metáforas era original
e o poema não passava de um remendo trôpego
de alarvidades
sujeito-me agora
à expiação do copista intalentado
confesso e assino por baixo
esgotei o baú das metáforas
sobra-me apenas um destino honroso
mudar de ramo
(literário). -
Improviso quase poético em forma de brinquedo...
Nem sempre o caminho
é voltar para trás
há esquinas em que apetece
enganar o destino
e seguir numa paralela
há poemas assim como crianças
escondidas debaixo da cama
para não serem vistas
eu tenho uma cama de pregos
por cima das palavras
em que me escondo. -
Testamento apócrifo de Alexandre Magno, rei da Macedónia...
De Aristóteles aprendi
que a natureza de cada um
é a sua máxima autoridade
e por isso a minha ambição
não se deteve diante de nenhuma fronteira
a eternidade que escutei em cada batalha
foi a única medida da razão
que a mim próprio me impus
persegui apenas um sonho
e a esse sonho sacrifiquei tudo e todos
menos a vaidade da grandeza que me prometera
não poupei traições nem desconfianças
mas fui magnânimo
com todos os cronistas de aquém e de além-mar
e os vencidos que se ofereceram à vassalagem
em troca do perdão
não vacilei diante dos inimigos
nem temi confrontos desiguais
e aceitei o preço mais alto da solidão
porque esse é o destino impartilhável
dos inventores de futuro
o poder construí-o sobre o mito da invencibilidade
e nem na morte abdiquei dele
digo
de mim
herança intransmissível
para que ninguém o diminuísse
o meu sonho teria que morrer comigo. -
Improviso para desaprender o futuro...
Já nada peço ao espelho
distraí-me da eternidade
e o tempo corre agora para trás
entre imagens em que já não me revejo
desaprendo-me lentamente
de me espreitar no futuro. -
Improviso através das grades...
Memória cela
como fugir dela?…
como voltar?…
perdi a chave
para poder entrar em mim
e sair de mim
sempre que quiser. -
My moleskine...
Parece que estamos sempre de partida
para sítio nenhum
viajamos incógnitos no silêncio
entre todos os passados
e todos os futuros
e um dia finalmente
abandonamo-nos a descansar
no cais do esquecimento
chorando um a um
como fazem os náufragos
todos os navios que nos adiaram. -
Saudades de Veneza...
Quando quero fingir de mim
afivelo uma máscara. -
Improviso sobre outra imagem...
Na memória das imagens que me interrogam
respondo-te com a antiguidade
de um tempo que me precede
Semicerro os olhos e desenho as tuas formas
numa espécie de neblina pré-histórica
Desconhecerei eternamente a idade que nos pertence. -
Improviso sobre uma imagem...
Aprender as mãos e os ouvidos
aprender o gesto e o corpo
aprender os cheiros e os sabores
aprender o silêncio
aprender o movimento
aprender os sentidos do olhar
e voltar sempre ao princípio de tudo. -
Poema ao estilo de Serge Gainsbourg...
Nunca disse je-teme
(assim mesmo, à portuguesa)
Preferi sempre a linguagem gestual
que não consente tradutor
(antes de me especializar em braille). -
Escrito sobre Christmas Music from Aquitanian Monasteries (12th century)
Moro na cidade de baixo
esquecido do rumo de outras cidades
Nem campos nem desertos
É daqui que vejo tudo o que sobra para os meus olhos
a rigorosa incontinência dos gestos das pessoas comuns
que já não aspiram a altares na embriaguês dos desejos
e os caminhos circulares dos que ainda procuram as pontes
que nunca existiram
Nem florestas nem praias
Na cidade de baixo
já não há vestígios das sete portas
e a esfinge sou eu. -
Escrito sobre o "Agnus Dei", de Frank Martin
Há palavras que se anunciam e me despertam
e outras que sem bater à porta entram por mim adentro
sorrateiramente
adoentando-me
Sou em estado de palavras
Não sei donde venho
ignoro todas as origens que me transportam
Por isso
peço apenas hospedagem ou internamento a mim próprio
e ofereço-me às palavras
para sobreviver com elas. -
Escrito sobre o Adagietto da 5ª Sinfonia de Mahler
(interpretado por The Uri Caine Ensemble)
Estou delicadamente construído sobre uma rede de canais
De todas as margens que hesito
saem pontes que me projectam para os outros lados de mim
Distraio-me
para perder sempre
a última carreira do vaporetto. -
Memória de uma voz...
Nat King Cole
Uma voz pode ser
interpretando mesmo a ausência
todo o centro de gravidade
da nostalgia.