Talvez da lixeira do Picoto
ainda se veja a cidade
antes de todas as guerras
a ponte que um dia terá sido romana
sobre o Guadalquivir
ou Rialto de todas as setas
alombando sobre o grande canal
os olhos que mergulham para dentro
cruzam todas as memórias
o flamenco e as máscaras
a certeza da porta fechada
que se abre para a noite
quando tu chegas e já não queres deitar-te
e lá em baixo outro canal
com as suas pontes de cimento
que ninguém atravessa
e Paris que corre entre nós
como se lá tivéssemos vivido
esta ausência de bússulas
que nos viaja
este mapa impossível
de tantas saudades
sem data e sem lugar
já estivemos lá
e perdemo-nos sempre.
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-
Improviso para vigiar o teu sono...
Nesse sonho viajas por mim
e vais ainda mais longe
do que já te imaginaste
a realidade do teu desejo
tem agora dimensões que desconhecias
e nao há célula do teu corpo
que me vire as costas
como na fotografia
o teu dicionário íntimo soletra palavras
princesa puta escrava
e acrescenta-lhes todos os adjectivos
com que te fantasias
nao há terminologia agora que te termine
renasces sempre em todos os sonhos. -
Improviso para conjugar o verbo pertencer...
Os meus olhos acrescentam luminosidade ao teu corpo
e quando entro pelas frestas do pensamento que me abres
percebo que já somos um
em vez de dois
o verbo pertencer conjuga-se assim. -
Improviso sobre Touch Me...
Há pepinos que cheiram ainda às minhas mãos
quando ouves comigo Touch Me
The Doors
lembras-te?
aquela batida que quase se confundia com o coração
e que só parava na espira seguinte do vinil
digo na vida seguinte
e as estrelas que não calavam a chuva
naquela letra que nunca foi de poema
come on come on come on
now touch me baby
e a promessa de todos os céus por azular
e mesmo o sopro que não faltava
não digo o instrumento
porque nunca percebi de metais. -
Improviso para um filho...
Habituei-me a ser conjugado por ti
dás-me muito mais do que a eternidade
nas palavras e nos sons que recuperas
para a noite
regressarei sempre contigo
depois de todas as madrugadas
que inventas
não sei se foi deus
mas tu existes. -
Improviso para uma leitora que esbarra na "abstracção da minha poesia...
Quando começo a viagem do poema
desconstruo-me sempre
nunca sei que sentidos me esperam
na esquina das palavras
vou por aí
desvendando-me
talvez encontre algures um leitor
que me convide para um copo
no bar além da tal esquina
que nunca antes atravessara
ou talvez regresse sozinho ao espelho
como se nem tivesse chegado a partir
a viagem do poema
é sempre a incógnita
dos olhares que me acompanham
há dias em que saio de casa
e nem os cegos dão por mim. -
Improviso geracional escrito sobre "Walk on by", de Isaac Hayes (1969)...
Li Marcuse
mas cheguei atrasado a Berkeley e a Nanterre
comecei por acreditar em Dubcek
mas Kafka reteve-me no aeroporto de todas as dúvidas
e já não apanhei a tempo
o avião para Praga
tentei ainda Woodstock (depois de ir à Lua)
mas a lotação estava esgotada
e quando finalmente
desci em Coimbra B
até o Alberto já tinha sido mobilizado
para a guerra colonial
e não fui além do Easy Rider
entre baladas de protesto
tenho andado sempre um passo atrás
da história que me destinaram
mas continuo a recusar a amnésia
com Walk on by. -
Improviso em forma de uivo...
Há quem se canse de latir em segredo
outros ladram para calar o silêncio das noites
desenhas-te na alma
o mapa das solidões animais. -
Improviso sobre a arte da caça...
A pele
arranhada dos tigres ausentes
(ou seria a alma da mobília?)
a floresta tem tantos silêncios felinos
os segredos é que ainda não estão
ao alcance de todos. -
Improviso sobre um desenho de Almada (1)...
Não tenho medidas para a perfeição dos corpos
aprendi na catequese da intimidade
que todos os corpos são imperfeitos
porque neles projectamos sempre alguma ausência
gestos ou formas que não casam exactamente com o desejo
ou talvez mesmo o imperceptível o movimento
que arranha por dentro o olhar e nos cega. -
Improviso sobre um desenho de Almada (2)...
Talvez não fosses tu quando mordesses
talvez não fosses tu quando arranhasses
talvez não fosses tu quando gemesses ou gritasses
talvez não fosses tu quando lambesses
talvez não fosses tu quando cheirasses
talvez não fosses tu quando saltasses e fugisses
talvez não fosses tu quando aninhasses
talvez não fosse tu quando escorresses
talvez não fosses tu quando montasses
talvez esse animal que trazes pela coleira
dependurado do instinto. -
Improviso ao estilo de Manoel de Barros...
Hei-de crescer com as silvas
e morrer entre elas
predestinei-me para erva daninha. -
Improviso sobre a eutanásia...
Não quero que me mates
se fores capaz de entender a diferença
pedir-te-ei simplesmente
que me ajudes a morrer. -
Improviso erótico...
De vez em quando apetece-me a reciclagem
deposito-me num contentor
e fico à espera que me levem
para a incineradora mais próxima
sinto que adoeço do lixo acumulado
depuro-me no fogo. -
Improviso sobre um estudo de Malhoa (1)...
Não sei se saio do teu corpo
ou das vestes que o prolongam
escondo-me sempre atrás do desejo
para parecer ausente. -
Improviso sobre um estudo de Malhoa (2)...
A metade da mulher que eu não reconheço
pertence à imaginação
é a parte que brinca
com a liquidez marítima dos meus olhos. -
Improviso sobre um estudo de Malhoa (3)...
Há sempre em mim
uma criança que te espreita e procura
regresso no fim ao princípio de tudo
para que me acolhas e rejeites. -
Improviso (em prosa?) sobre um acordeão esquecido...
Há um instrumento musical em que sempre tropeço,
quando me levam pela mão a ouvi-lo: o acordeão.
Sento-me na soleira da porta da casa dos meus pais
fecho os olhos para fingir de cego
(ou fixo-os num ponto qualquer ausente em mim)
e toco.
Toco aquele velho e trôpego acordeão,
enquanto as beatas de mantilha negra
a caminho do ofício do terço (ou seria da verbena?)
deixam a moeda distraída no chapéu virado do avesso,
como agora a minha memória.
Os homens não levam a mão ao bolso.
A caridade é feminina.
E eu continuo a tocar para ninguém
o acordeão que me escorre dos dedos
(ou será da alma?).
Hei-de procurar-me lá:
na soleira da casa onde nasci.
Talvez me encontre
(ou a partitura)… -
Improviso para violoncelo e silêncio...
Há dias em que homossexualmente me basto
com as suites para violoncelo de
Johann Sebastian Bach
não preciso de mais
para antecipar a superior e feminina
musicalidade do silêncio que me espera
depois da última nota. -
Improviso sobre ninguém...
Às escondidas eternamente dos meus pais
venho há muitos anos do futuro
a dançar com alguém que desconheço
uma mulher (suspeito)
porque só as mulheres dançam assim
nos meus braços vazios
é em ti que eu me projecto em movimento
quando desejo ninguém.