Se vivesses
um pouco mais perto
do mundo
dirias talvez
que a felicidade não tem dias
mas átomos apenas
e que não há
na vertigem dos sonhos
costas mais largas
do que as costas
da eternidade
se vivesses
um pouco mais perto
do mundo
talvez soubesses
que o mundo começa e acaba
no olhar com que o abraças.
-
-
Improviso sobre o fogo em que ardemos...
Como Marley
poderia também dizer-te
No Woman No Cry
as lágrimas não abrem as janelas
que deixámos fechar
e há manhãs de sumo de laranja
que não voltaremos a beber
as saudades tropeçam no destino
e nós tropeçamos nas saudades
sobra ainda esta fuligem de fogo
que nos sufoca por dentro
como se continuássemos a arder. -
Improviso sobre um auto-retrato...
Já fui todas as palavras
que não ousaste dizer
as mãos algemadas
numa culpa antiga de gestos
uma quase impotência
finjo que não vejo
o fogo da distância tão próxima
o fogo e o vento gelado
e subo a todas as montanhas
para uivar com os lobos
não lamento nada
escrevo apenas
para que te ouças.Que dizem as imagens do que fomos? Que diz esta imagem do que fui? Não importa quando. A memória que retemos das pessoas começa sempre por fixar imagens. Depois, talvez, palavras. Por fim, as vozes. E, porém, são as vozes que prolongam por mais tempo a nossa identidade. Não há duas vozes iguais. Talvez, por isso, a música resista melhor do que a poesia à erosão do próprio tempo. A eternidade dos sons pode sempre muito mais do que a eternidade das palavras. As imagens, essas, estão sempre a mudar. Nós é que, frequentemente, não reparamos. Continuo a falar para ser ouvido. E, se possível, vivido...
-
Improviso para não desistir do círculo...
Há muitos anos que acredito que
as mentalidades hão-de mudar
acho mesmo que nasci a acreditar que
as mentalidades hão-de mudar
tenho a certeza de que morrerei a acreditar que
as mentalidades hão-de mudar
mudarei? -
Improviso quase para desenfeitiçar...
Nada é mais escuro do que a noite
que me ofereces e porém mais claro
tenho antípodas no pensamento
que te viaja
entre todos os solstícios. -
Improviso para desdizer....
Não invento luzes no teu corpo
nasci desapalavrado para evidências. -
Improviso oficinal...
Desaparafuso-me do pensamento em emoções
as peças já não me encaixam. -
Improviso confidencial...
Confidencias-me diariamente
o medo e o orgulho do sofrimento
lentamente
desapossas-te do corpo que te serviu
e agora serve apenas
espantosa viagem essa
do alto-mar para o cais dos espinhos
o universo em ti todo a nado
metáfora de uma paixão talvez sem falhas. -
Improviso a brincar com palavras e os seus sentidos...
Toda a vida
todavia
toda a vida. -
Improviso breve para pedra tumular...
O meu universo foi estreito
só teve dias de 24 horas
e morri na navalha de todos os deuses. -
Improviso para tatuar futuros...
Ofereces-me as costas
para que eu escreva nelas
frágil território para mãos
tão carentes de narrativa
deixa-me reiventar o dicionário e a gramática
soletra-me depois. -
Improviso com partitura...
A tua voz vem de muito mais longe
para trás ficam
os limites que te imponho
quando ainda cantavas livremente
e não obedecias a partituras
entras-me agora por todos os ouvidos
e serpenteias-me os braços
em direcção ao peito
o único alvo que não erras. -
Improviso sobre uma imagem...
Donde sai de ti
o pensamento que finge não ver?
onde começam e acabam os teus braços
e as tuas pernas
e onde se cruzam?
há um sinal no horizonte do corpo
que quase te desvenda
um enigma em forma de vela
uma insinuação de género
uma sombra de antiquíssimo pudor. -
Improviso em forma de haiku para me viajar subúrbio...
Já me circum-naveguei tantas vezes
que perdi a noção do centro histórico de mim
agora viajo-me subúrbio. -
Improviso para contar que regressei do Mali...
No deserto
o mar deve dizer-se
como tu o dizes
e eu que nada entendo
do que dizes
embora perceba tudo
até o mar
esse mar eternamente imutável
na voz das mulheres
que desertam contigo. -
Improviso para voar sobre o atlântico...
Não há mãos que triunfem sobre as palavras
nem as mãos que te acordassem dessa tela
onde quase repousas
não há mãos nem chicotes nem algemas
o teu corpo pede agora viagens imateriais
exige o cárcere sem grades
suplica evidências que neguem a superfície do espelho
já quase obedeces apenas a ti própria
um pouco mais de submissão e
poderás conceder-te finalmente a liberdade
de voares nas minhas asas. -
Telegramando...
Não me esperes do outro lado da sebe stop
Não me obrigues a saltar sobre o muro
que posso cair e partir a bússola stop
Vem ao meu encontro procura-me stop
Estarei onde tu quiseres stop
e trarei comigo um sinal de luz
nos olhos cansados mas ainda abertos stop
para que me distingas na noite stop
no cinzento baço da penumbra dos bosques
por entre os pirilampos stopPublicado em “Descansando do Futuro – Reserva de Intimidade”, Edições Asa, 2003 -
Improviso para dizer a eterna natureza masculina...
Sim claro
os preservativos
não me esqueci dos preservativos
nem tão pouco dos acessórios
para os preliminares
Álvaro de Campos
Herberto Helder
Almada Negreiros
no fundo da mala
a caderneta incompleta
não colei ainda o teu cromo
superstição
reservei o hotel
sessenta e nove estrelas
duas camas individuais
não vá o diabo tecê-las
(diz lá que não rima!)
pequeno-almoço continental
internet
levo pijama
para as leituras primárias
e o portátil
onde guardo a ficção
não descuides por favor a lingerie
que pode falhar-me o tesão. -
Improviso sobre Yamore...
Vagueias o amor em pedaços
repartes-te assim
ouves quando não vês
se perdesses os olhos
verias com as mãos
se as mãos não vissem
talvez cheirassem
e
ainda que mutilada de todos os sentidos
continuarias a pensar-me
o amor tem silêncios
que só tu ouvirás. -
Improviso em forma de haiku para me oferecer...
Emprestaria o corpo para realejo
se alguma rua me quisesse
já não tenho serventia para afinador.